sexta-feira, 15 de maio de 2020

Argentina e como evitar uma catástrofe financeira mundial

Créditos da foto: (Mario De Fina/NurPhoto via Getty Images)

NOVA IORQUE – Quando um único carro derrapa numa estrada com gelo, o resultado pode ser um acidente com 50 carros. O mesmo acontece com os mercados financeiros internacionais: a inadimplência do México, em 1982, levou a um choque em cadeia de dezenas de países; a desvalorização da Tailândia, em julho de 1997, originou a crise financeira asiática; a falência do Lehman Brothers, em setembro de 2008, detonou a Grande Recessão em todo o mundo.


Por Jeffrey D. Sachs                                                 14/05/2020 11:32

Os financiadores internacionais deveriam saber melhor do que ninguém como não iniciar o colapso de 2020 causado pela COVID-19. A sua sabedoria será testada em breve.

Mesmo antes de a COVID-19 atirar a economia mundial para a pior crise desde a Grande Depressão, já a Argentina estava em dificuldades com o endividamento, mais uma vez. Como tantas vezes aconteceu na história da Argentina conduzida pela inadimplência, um acordo mal planeado com credores recalcitrantes em 2016, seguido de um rápido regresso aos mercados de títulos, provou ser uma ilusão tanto para o então presidente da Argentina como para os credores do país.

Os défices orçamentais prejudicaram a estabilidade. Um programa de resgate, em 2018, com o Fundo Monetário Internacional não funcionou. E as dívidas da Argentina, com as suas taxas de cupão muito altas, revelaram ser insustentáveis.

Ainda assim, a Argentina não estava sozinha. Uma vez que os padrões de empréstimo permissivos dos mercados financeiros e a ampla liquidez injetada pela Fed e por outros bancos centrais levaram muitos países em desenvolvimento a contrair empréstimos elevados nos últimos anos, a angústia da dívida soberana foi cada vez mais reconhecida como um grande risco sistémico. Houve uma sessão nas Reuniões de Primavera do FMI de 2019 que foi intitulada de: "Enfrentar a próxima vaga de crises de dívida soberana”.

É então que entra em palco a COVID-19. A quebra nos preços do petróleo em março, o início de um confinamento quase global, as receitas governamentais em queda e os gastos públicos gigantescos para a sobrevivência das populações produziram uma crise financeira mundial inigualável em tempos de paz. O défice orçamental dos EUA irá disparar para cerca de 18% do PIB ou mais. Para dezenas de economias emergentes, o panorama financeiro não poderia ser mais desanimador.

No entanto, mesmo neste contexto, a Argentina fez uma proposta de reestruturação da dívida aos seus credores que é realista e favorável. Os seus credores deveriam reagir de forma positiva. Vejamos como funciona.

A dívida existente da Argentina possui uma taxa média de cupão de 7%, que são cerca de sete pontos percentuais a mais do que o cupão zero pago pela Alemanha sobre os seus títulos governamentais a 30 anos e cerca de seis pontos a mais do que o cupão de 1,2% pago pelo Tesouro dos EUA. A Argentina constatou, e com razão, que a taxa de cupão de 7% irá requerer o incumprimento. O FMI concordou que é insustentavelmente elevada. Poucos governos, ou nenhum –nem mesmo os Estados Unidos –conseguiriam gerir uma taxa de cupão de 7% neste ambiente económico.

Os credores da Argentina dizem que precisam de um cupão de 7%, ou até mais, devido à probabilidade de inadimplência. Mas eles parecem não entender que, se o cupão da Argentina for reduzido para uma taxa próxima à dos EUA, a inadimplência não será necessária. A elevadíssima taxa de cupão de 7% é uma profecia autocumprida: torna a inadimplência inevitável, quando uma taxa de juro mais baixa torná-la-ia desnecessária.

A Argentina propôs refinanciar a dívida atual a taxas de juro baixas e seguras, evitando a necessidade de impor uma “margem de avaliação” no capital principal. (Na verdade, de acordo com a lei argentina, a proposta de troca inclui uma pequena redução simbólica do valor nominal da dívida que, na minha opinião, deveria ser eliminada em qualquer acordo final). Tal como um refinanciamento da hipoteca de uma casa, os títulos existentes seriam substituídos por títulos que refletem as baixas taxas de juro atuais. Mas, em vez de uma taxa de cupão igual à taxa do Tesouro dos EUA, a Argentina propõe uma taxa média de cupão de 2,3%, superior à rentabilidade dos títulos do Tesouro nas carteiras dos seus credores. Há pormenores sobre os períodos de carência e os prazos dos pagamentos de cupões que deveriam ser negociados, aperfeiçoados e finalizados à luz das realidades económicas sombrias e em desenvolvimento.

Mas os credores são um grupo estranho. Eles alegam que a Argentina está a impor uma margem de avaliação significativa, embora não haja essencialmente nenhuma. O governo da Argentina está a propor uma rentabilidade segura superior à taxa de juro segura dos EUA e a lógica da sua proposta está correta. Por que razão deveria continuar com uma taxa de juro elevadíssima que causa o risco de incumprimento no qual se baseia? E porque é que os credores prefeririam um incumprimento da Argentina em vez de uma recuperação económica?

Os credores calculam a suposta margem de avaliação na proposta da Argentina usando uma taxa de desconto de 10 a 12%, como se merecessem uma rentabilidade livre de risco igual ou superior a 10% quando a taxa dos títulos do Tesouro dos EUA está um pouco acima de 1%. A imprensa financeira segue em frente, informando obedientemente que a Argentina está a forçar uma margem de avaliação profunda aos credores, quando não está a fazer nada disso. De facto, a Argentina está a reduzir a taxa de cupão com risco de incumprimento para uma taxa de cupão livre de incumprimento.

Eu até iria mais longe. Alguns credores oficiais ou instituições multilaterais amistosos poderiam adoçar o acordo garantindo alguns ou todos os pagamentos da Argentina sobre os novos títulos. Essa garantia seria uma aposta totalmente segura: com a baixa taxa de cupão e a nova estrutura de vencimentos, a Argentina não seria inadimplente.

Os mercados financeiros mundiais tendem a entrar em pânico quando um só país, quanto mais vários, começa a derrapar. Neste momento, há provavelmente 30 a 40 países com dificuldades orçamentais profundas. Todos eles precisam de refinanciar as respetivas dívidas este ano e no próximo, até que a recuperação da pandemia restabeleça a atividade económica mundial, recupere as receitas dos governos e reduza a necessidade de gastos de emergência.

Nessas situações, a racionalidade coletiva nos mercados financeiros requer orientação do FMI e liderança de alguns credores importantes. Caso contrário, seguir-se-á uma disputa entre os credores (uma variante do dilema do prisioneiro). Cada credor diz aos outros: “Tu refinancias a dívida enquanto eu sou reembolsado, obrigado.”

Se forem tratados com cuidado, os pagamentos do serviço da dívida deste ano podem e devem ser recapitalizados com baixas taxas de juro para evitar um choque em cadeia financeiro. Caso contrário, 2020 marcará um devastador novo episódio de crise financeira mundial.

No Pânico de 1907, foram J. Pierpont Morgan e o seu banco que conduziram o sistema financeiro para longe do abismo. Em 2020, tem de ser a BlackRock, que possuía 6,5 biliões de dólares em ativos sob gestão no final do primeiro trimestre e é um dos principais credores da Argentina. A BlackRock poderia orientar os detentores de títulos a refinanciar a dívida da Argentina a uma taxa de cupão segura e fazer o mesmo com outros mutuários soberanos com dificuldades devido à pandemia.

É a sua vez, Larry Fink. É a sua vez de ajudar a evitar uma catástrofe financeira mundial.

*Publicado originalmente em 'Project Syndicate'

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