segunda-feira, 27 de abril de 2020

Sobre a “origem” e as “responsabilidades” da pandemia (I)

Donald Trump - Foto: Aubrey Gemignani/Fotos Públicas

Donald Trump, “o líder ultraconservador, no intuito de desviar as atenções globais da magnitude de suas próprias ações, volta a tentar incluir a pandemia na conta chinesa”, analisa Yuri Martins-Fontes



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Há alguns dias, Donald Trump acusou novamente a China de ser a “responsável” pela pandemia do novo coronavírus, afirmando que os Estados Unidos estão investigando se sua origem teria sido, não em um mercado de animais chinês, como aventado, mas em um laboratório de pesquisas médicas e virologia, em Wuhan.

O líder ultraconservador, no intuito de desviar as atenções globais da magnitude de suas próprias ações, volta a tentar incluir a pandemia na conta chinesa, em meio à crescente guerra econômica contra este seu principal oponente geopolítico da atualidade.

Contudo, a “investigação” que os EUA efetivamente deveriam realizar para, não só descobrir os “responsáveis” pela pandemia, mas evitar outras similares no futuro, não precisaria ir muito além de seu próprio país – talvez até a Europa Ocidental.

Se suas intenções de resolver o problema fossem sérias, bastaria observar o que já foi pesquisado e comprovado por infinidades de cientistas naturais e historiadores ao longo das últimas décadas, e inclusive está relatado como “principal causa” da atual calamidade sanitária pela própria ONU: a destruição acelerada do meio ambiente por um capitalismo em crise que, nos obstáculos do caminho, perdeu suas últimas rédeas éticas.

A origem “animal” do coronavírus

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou – e ora reafirmou – que um animal é a provável fonte de transmissão do novo coronavírus. E cientistas de variadas partes do mundo têm confirmado tal hipótese; embora não haja ainda consenso.

Já o relatório “Fronteiras 2016: sobre questões emergentes de preocupação ambiental”, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), afirma que os recorrentes surtos de zoonoses – caso dos variados coronavírus – são reflexos da intensa degradação ambiental.

Os coronavírus são zoonóticos: transmissíveis de animais para humanos. As enfermidades que causam têm estado em significativa ascensão neste novo século; cenário que só piora, na medida em que os habitats silvestres são cada vez mais destruídos pela atividade humana.

Nos últimos anos, várias doenças similares à Covid-19 se tornaram preocupação global por sua capacidade de causar pandemias, tais como ébola, gripe aviária, febre do Vale do Rift, ou zikavírus.

De acordo com o PNUMA, as zoonoses têm se imposto crescentemente como ameaças contundentes ao “desenvolvimento econômico, ao bem-estar animal e humano, e à integridade do próprio ecossistema” – em que todos habitamos. Em duas décadas, estas enfermidades tiveram “custos diretos” de “mais de 100 bilhões de dólares”, o que poderia ter-se multiplicado (“vários trilhões de dólares”), caso tivessem efetivamente se tornado pandemias. Como agora…

Para se evitar que surjam tais zoonoses, afirma o órgão da ONU, seria fundamental que “o homem” (leia-se com menos imprecisão: “a indústria capitalista”) freie suas múltiplas ameaças aos ecossistemas e à vida silvestre, reduzindo a agressão e fragmentação dos habitats de animais selvagens, bem como a poluição generalizada, e sobretudo estancando as mudanças climáticas.

Controvérsias sobre a origem “espacial” do novo vírus

Quanto à origem “espacial” deste coronavírus, há ainda controvérsias. Controvérsias que seriam tolas, se não fossem justamente destinadas a tirar o foco do problema: a devastadora concorrência capitalista por mais territórios e recursos naturais.

Ambas as hipóteses que vêm sendo consideradas – que o vírus tenha surgido primeiro nos EUA, ou na China –, ainda que plausíveis, não mudam muito a constatação predominante: a de que a grande responsabilidade pela pandemia (questão que vai muito além da simples “origem do coronavírus”) é um sistema de produção desgovernado e agressivo que, em época de agudização da crise econômica global (crise estrutural do capitalismo, que se aprofunda desde 2008), desregula temerariamente o metabolismo entre o homem e a natureza.

Em outras palavras: o desequilíbrio do ecossistema planetário já está em situação-limite; rapidamente se aproxima de um ponto de não retorno, e isto abre espaço para que venham a ser recorrentes tais tipos de catástrofes sanitárias.

Portanto, a questão que deve ser colocada e equacionada, prioritariamente, não é a de se este vírus, em si, é resultado de mutação genética ou de má segurança em laboratórios de virologia (hipóteses possíveis e verificadas na história), mas sim: como a comunidade internacional poderia fazer um esforço conjunto para reorientar o desenvolvimento de um mundo que há séculos é refém de um “progresso instrumental”, meramente “tecnológico”; falso “progresso”, pois não visa o “desenvolvimento social” e a “emancipação humana”, mas pelo contrário, é francamente voltado ao “crescimento dos lucros” (corporativos), através de um cada vez mais intenso “controle” do homem e da natureza.

Se há cinco séculos, o filósofo Francis Bacon, entusiasmado com os incipientes avanços científicos – que começavam a chegar a uma Europa ainda periférica, atrasada e pobre –, definiu a função da ciência como sendo a “vitória sobre a natureza”, durante todo este tempo somente piorou esta visão rasa, “controladora” e sem perspectiva da “totalidade” complexa que compõe a vida social e natural.

Conspirações são possíveis na geopolítica do vale-tudo

No início da epidemia, enquanto o surto ainda estava localizado na China, um Trump bonachão, quase com um sorriso, desdenhava da calamidade em descuidadas mensagens por redes sociais; enquanto seu secretário de Comércio, Wilbur Ross, sem nenhuma vergonha, explicitava publicamente seu otimismo com o problema “chinês”, que se agravava, chegando até a declarar (digamos, com “pouco humanismo”) que o novo coronavírus: “ajudará a acelerar o retorno de empregos nos Estados Unidos”!

No mês passado, já menos alegre, Trump mostrou por fim preocupação com o surto de coronavírus, denominando-o provocativamente de “vírus chinês” – à medida que via desabar as perspectivas econômicas de seu país.

Ocorre que a pandemia, que já infectou mais de dois milhões de pessoas em todo o mundo e vem afetando violentamente a economia global (sobretudo a dos EUA, ameaçando sua posição geopolítica dominante), tem a peculiaridade de ser em certo aspecto “democrática”, já que (apesar de ameaçar mais aos pobres e aos sem recursos, como toda doença) tem também atingido os ricos e poderosos. Este fato tem levado neoliberais convictos, mas com alguma racionalidade (o que não é o caso de terraplanistas e neofascistas afins) a se absterem de sua ambição por lucros velozes, optando pela paralisação econômica; não por sentimentos humanos, é claro, de que dispõem tão pouco, mas por projetarem prejuízos maiores em caso contrário.

O gesto intempestivo e xenófobo de Trump logo recebeu resposta – contundente! – do porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China, Zhao Lijian: “Pode ter sido o Exército estadunidense que levou a epidemia a Wuhan”. Em sua alegação, Lijian fazia referência a alguns curiosos episódios, ainda hoje não investigados a fundo:

I) Em outubro de 2019, teve lugar em Wuhan, os Jogos Olímpicos Mundiais Militares, com a participação de mais de 100 países; em reportagem, o jornalista estadunidense George Webb afirma que o piloto e ciclista militar Maatje Benassi teria levado o vírus à China em sua participação na competição; publicação do Departamento de Defesa dos EUA confirma que este ciclista realmente participou de prova ciclística em Wuhan, pouco antes do começo da epidemia;

II) De acordo com matéria do jornal The New York Times, o Pentágono detectou, no mesmo período, casos de coronavírus entre seus militares (que a princípio estariam atuando na Coreia do Sul e na Itália);

III) Outro fato a ser investigado é o fechamento – por “falta de segurança” – de laboratório de armas biológicas do Centro Militar de Fort Detrick, em Maryland (EUA), que se dedicava a pesquisas sobre vírus, germes e doenças infecciosas, e encerrou suas atividades, em julho de 2019, alegadamente devido a problemas com o descarte de materiais biologicamente perigosos, e que inclusive teriam vazado, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC).

O porta-voz chinês, em sua resposta, citou ainda o próprio diretor do CDC, Robert Redfield, que, recentemente questionado sobre se foram descobertas, postumamente, mortes por coronavírus nos Estados Unidos, respondeu: “Alguns casos foram, agora, realmente diagnosticados desse modo nos EUA”.

Suscitados pelo debate, diversos pedidos foram feitos aos EUA para que expusessem os exames de saúde de Benassi à época e realizassem novas provas, tornando esses dados públicos, com vistas a dirimir possíveis especulações e facilitar as investigações sobre a pandemia.

Mas o governo Trump desconsiderou os pedidos por transparência (transparência que agora “exige” aos chineses).

Terrorismo biológico tem história

Junte-se as peças, e está aberta interessante margem para se pensar que o misterioso “paciente zero” poderia ter sido um estadunidense, como afirma o repórter; e que, portanto, poderiam ter sido, não animais silvestres de um mercado chinês, mas competidores militares dos EUA – previamente contaminados – os responsáveis por fazer o vírus chegar a Wuhan: propositalmente ou não!

E, de fato, há exemplos infelizes na história que comprovam a plausibilidade da hipótese “proposital”.

Por exemplo, durante a Guerra da Coreia, no âmbito da Guerra Fria, a União Soviética e a China acusaram os Estados Unidos de usar agentes biológicos contra a Coreia do Norte; Washington, mais tarde, admitiu que havia estudos para produzir tais armas (!), mas que não foram usadas.

Já em 1963, de acordo com documentos ora desclassificados (divulgados pelo Arquivo de Segurança Nacional dos EUA), a CIA – com apoio da própria Casa Branca – tentou contaminar com bacilos de tuberculose Fidel Castro, através de um advogado-espião ianque, James Donovan, que então negociava com o comandante cubano a libertação de seus mercenários (fato que aliás já rendeu livros e filmes).

Outro caso ocorreu logo após o fracasso da invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, quando, com aval do governo Kennedy, a CIA aliada à máfia dos EUA (veja-se episódio recentemente abordado pelo próprio cinema hollywoodiano), pôs em prática a famosa “Operação Mangusto”, que incluía entre suas ações o uso de agentes biológicos e químicos para destruição de colheitas cubanas e contaminação de camponeses.

Dentre tantos outros exemplos, vale lembrar ainda a confissão de Eduardo Arocena, em 1984; este agente da CIA de origem cubana, em julgamento realizado em Nova Iorque, declarou à corte que a missão do grupo que ele chefiava era a de obter organismos infecciosos (patogênicos) e introduzi-los em Cuba – documento que consta em ata pública, mas que jamais foi investigado pelas autoridades “competentes” dessa nação-império.

Não sendo a intenção deste artigo enveredar por esses tantos casos de “guerra suja” – que mostram a que níveis de baixeza o homem-moderno foi e é capaz em sua busca por lucros e poder –, fecha-se o “capítulo”, mencionando que, em julho de 2001, George W. Bush vetou um protocolo da ONU que visava dar mais poderes à Convenção Internacional sobre Armas Biológicas, argumentando que isso poderia causar interferências em “pesquisas legítimas” dos EUA. Na ocasião, especialista entrevistado pela BBC (Nicholas Sims, da London School os Economics) considerou tal atitude como “isolacionista”, obviamente vista como “obstáculo ao fortalecimento da Convenção”. Gesto que, portanto, desde então facilitou a possível disseminação de “vírus” enquanto armas de exterminação humana.

Considerando-se, no caso desta específica calamidade, que (na melhor das hipóteses) o vírus tenha se originado “naturalmente”, ou antes “ao acaso provocado” (motivado pela destruição do meio ambiente), voltamos então ao afirmado no início: a responsabilidade pela atual pandemia deve ser investigada no chamado “progresso moderno”; em seu falso “desenvolvimento”, meramente técnico, espetaculoso e controlador; em um mundo desregulado entregue aos desígnios dos interesses corporativos (sobretudo após a consolidação neoliberal nos anos 1980), e cuja capacidade autodestrutiva é conhecida ao menos desde a catástrofe da Primeira Guerra Mundial.

[Continua]

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum

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