"Teria a gripe espanhola, pandemia que devastou o Brasil e o mundo entre 1918 e 1920, alguma relação com a melancolia do compositor?", escreve Cynara Menezes, do Jornalistas pela Democracia. "É ele mesmo quem dá a pista em uma cena do belo documentário de Leon Hirszman, Nelson Cavaquinho, de 1969"
31 de maio de 2020, 14:09 h Atualizado em 31 de maio de 2020, 15:16
Por Cynara Menezes, do Jornalistas pela Democracia
O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente
É o juízo final
A história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver
A maldade desaparecer
Talvez nenhum sambista tenha levado tão a ferro e fogo os versos de Vinicius de Moraes “mas pra fazer um samba com beleza/ é preciso um bocado de tristeza” quanto o carioca Nelson Cavaquinho. A maior parte das centenas de músicas que ele compôs gira em torno da morte, do luto, da solidão. Teria a gripe espanhola, pandemia que devastou o Brasil e o mundo entre 1918 e 1920, alguma relação com a melancolia do compositor?
É ele mesmo quem dá a pista em uma cena do belo documentário de Leon Hirszman, Nelson Cavaquinho, de 1969. “Eu nasci em 1910 (na realidade foi em 1911; o pai alterou a data de nascimento para ele entrar na Polícia Militar), e de lá para cá já passei por tantas coisas tristes… E não sei se essas músicas que eu faço… Não sei se estão dentro do meu sofrimento, porque até minhas músicas são tristes, né?”, diz o sambista, olhando para o chão. “Os caminhões cheios de cadáveres em 1918… Aqueles caminhões cheios de cadáveres… Eu digo: ‘Mas aonde irá essa gente?’ Eu era menino, oito anos, e só via aqueles caminhões passarem.”
Dois anos antes, em fevereiro de 1967, uma reportagem do Correio da Manhã sobre o depoimento de Nelson Cavaquinho ao MIS (Museu da Imagem e do Som) reforça a hipótese de a pandemia de 1918 ter contribuído para o apego do sambista aos temas mortuários.
“Nelson, que apesar de se considerar alegre, não sabe por que suas músicas saem sempre tristes, compôs Degraus da Vida, que diz: ‘Sei que estou no último degrau da vida, meu amor’. (…)Talvez a gripe espanhola, que matou grande parte da população do Rio de Janeiro, tenha influenciado Nelson em suas músicas, e contribua para a tristeza dos versos nelas contidos”, diz o texto.
Não é difícil imaginar que o trauma da visão dos caminhões apinhados de gente morta, percorrendo soturnamente as ruas vazias do Rio de Janeiro, tenha marcado toda a geração de Nelson Cavaquinho. O escritor Pedro Nava também se refere a eles em suas memórias sobre a gripe espanhola.
“Além da fome, da falta de remédio, de médicos, de tudo, as folhas noticiavam o número nunca visto dos doentes e cifras pavorosas do obituário. As funerárias não davam vazão –havia falta de caixões. Até de madeira para fabricá-los, ao ponto dum carpinteiro do subúrbio atender encomendas fazendo os envelopes com tábuas do teto e do soalho de sua casa. Alças de corda. Ganhou fortuna”, conta Nava em Chão de Ferro.
“Quanto ataúde havia, não tinha quem os transportasse e eles iam para o cemitério a mão, de burro-sem-rabo (carroceiro), arrastados, ou atravessados nos táxis. No fim os corpos iam em caminhões, misturados uns aos outros, diziam que às vezes vivos, junto com os mortos. Havia troca de cadáveres podres por mais frescos, cada qual querendo se ver livre do ente querido que começava a inchar, a empestar.”
De acordo com o escritor, no pico da epidemia, quando não havia mais como transportar tantos cadáveres, os caminhões foram substituídos por bondes, solução apresentada ao chefe da polícia por um folião carnavalesco famoso, José Luís Cordeiro, o Jamanta, jornalista do Correio da Manhã.
“No fim os corpos iam em caminhões, misturados uns aos outros, diziam que às vezes vivos, junto com os mortos. Havia troca de cadáveres podres por mais frescos, cada qual querendo se ver livre do ente querido que começava a inchar, a empestar”
“Ele conhecia admiravelmente o seu Rio de Janeiro e por um desses caprichos de boêmio aprendera, em passeatas noturnas, a dirigir bondes. Pediu e obteve dos seus superiores um bagageiro com dois taiobas (tipo de bonde para transporte de cargas) e vasculhou com eles a cidade de norte a sul –Fábrica de Chitas, Tijuca, Andaraí, Aldeia Campista, Vila Isabel, Méier, Engenho de Dentro, Piedade, Cascadura, Penha Circular, Benfica –apregoando que todos pusessem para fora seus mortos. Bonde e reboques cheios de caixões empilhados e de amortalhados em lençóis, o motorneiro solitário batia para o Caju. Descarregava. O dia já ia alto mas ele voltava a nove pontos, varejava Laranjeiras, Flamengo, Botafogo, Jardim Botânico, Ipanema, Copacabana –pegando mais defuntos. Lotava. Já noite, passava a sinistra composição como o Trem Fantasma ou o navio de Drácula –entupida de carga para o São João Batista. Fez isso uns dois ou três dias que marcaram para sempre sua lembrança”, contou Nava.
Pena que Leon Hirszman não espichou mais o assunto da gripe espanhola na entrevista com Nelson Cavaquinho… Foi o cineasta, no entanto, quem eternizou de forma genial a conexão entre o sambista e a morte, ao convidá-lo para fazer justamente a trilha sonora desta obra-prima que é A Falecida, em 1965, quatro anos antes do documentário.
Baseado na peça de Nelson Rodrigues, o filme conta a tragicômica história de Zulmira (Fernanda Montenegro, novinha…), uma mulher obcecada pela ideia de que irá morrer em breve, com Luz Negra, de Cavaquinho, à guisa de marcha fúnebre. Sempre só/E a vida vai seguindo assim/Não tenho quem tem dó de mim/Estou chegando ao fim…
Aqueles caminhões que assombraram a infância de Nelson Cavaquinho voltam a aparecer em dezembro de 1972, em entrevista a Flavio Moreira da Costa, no Jornal do Brasil. “A gripe espanhola foi em 1918 e eu nasci em 1911 –tinha portanto 7 anos. A gripe pegou todo mundo, em casa nós também ficamos gripados, mas ninguém morreu nessa ocasião. Mas foi terrível: não tinha mais lugar nos cemitérios, os caminhões passavam lotados de cadáveres”, lembrou o compositor.
Sobre o porquê de fazer tantas músicas tristes, ele respondeu: “A minha natureza é essa, não é? Eu vejo tanta coisa por aí, tanta coisa triste em que às vezes eu me baseio –por ver coisas tristes assim que eu faço músicas tristes. Eu sou inimigo de ver o pessoal sofrendo, se eu puder socorrer, socorro. Sei lá, eu tenho pena de todo mundo. Esse negócio de morte também sai assim nas músicas. Não só eu, outros compositores também falam de morte. Agora, parece que falo mais do que eles…”
Embora seus primeiros sambas de sucesso sejam da década de 1940, quando Dalva de Oliveira gravou Palhaço, Nelson Cavaquinho só vai lançar seu primeiro disco, Depoimento de Um Poeta, em 1970. Na época, ele já era conhecido como o sambista do luto, e sofreu certo bullying de Sérgio Cabral (o jornalista, pai do ex-governador) e da jornalista Eneida de Moraes, que conversam com ele no intervalo entre as canções.
Sérgio Cabral: Ô Nelson, você está na fossa?
Nelson Cavaquinho: Tô não.
Cabral: Por que esse olhar tão triste?
Cavaquinho: Eu sempre fui assim, né?
Eneida: Nelson, por que você nunca fala em felicidade? Não tem uma composição sua que tenha essa mensagem que afinal é de esperança. Por que isso? Você não me parece um sofredor. Seu tipo não é de sofredor, hein?
Cavaquinho: Eu não uso quase essa parte assim de falar em felicidade. Mas gosto quando um amigo chega para mim e diz: ‘estou tão feliz’. Mas mesmo assim eu gosto muito de felicidade. Não é por não falar de felicidade que eu não goste de felicidade.
Eneida: Então comece a falar nela, hein?
No final dos anos 1960 e começo dos 1970, Nelson Cavaquinho caiu nas graças da turma do Pasquim, da qual Sérgio Cabral fazia parte. O sambista é citado em quase todas as edições durante os primeiros anos do semanário de humor, sempre apontado como gênio por Jaguar, João Antonio, Tom Jobim…
“Eu falo muito em morte, mas não quero morrer não, hein. Se puder viver mais uns 40 ou 50 anos, para mim é negócio. Eu tenho umas oito ou nove músicas falando em morte, mas penso que Deus não vai me castigar por causa disso. Quando eu tiver que morrer não vou poder evitar mesmo, não é?”
O cavaquinista – que na verdade gostava mesmo era de tocar violão– é o personagem da entrevista de capa do número 27 do Pasquim, em dezembro de 1969, na qual a turma também pega no pé dele com a história da morte. Nelson leva na esportiva e até brinca que está tentando abandonar a mania, porque podia estar lhe atraindo má sorte.
“Eu falo muito em morrer porque eu procuro sempre a realidade. Eu perdi há pouco um sobrinho eletrocutado, numa filmagem que estavam fazendo comigo. E há tempos eu fiz uma música, a coruja – ‘a coruja passou e piou, é sinal que alguém embarcou’ –, e aí morreu um amigo meu. Vou deixar de falar em morte porque não estou aqui para isso, não”, galhofou. “Eu falo muito em morte, mas não quero morrer não, hein. Se puder viver mais uns 40 ou 50 anos, para mim é negócio. Tenho de parar mesmo com esse negócio de estar falando em morte, porque não estou pra isso, não. Eu tenho umas oito ou nove músicas falando em morte, mas penso que Deus não vai me castigar por causa disso. Quando eu tiver que morrer não vou poder evitar mesmo, não é?”
A obsessão de Cavaquinho era tal que chega a flertar com a necrofilia em uma de suas canções, Depois da Vida.
Passei a mocidade esperando dar-te um beijo
Sei que agora é tarde, mas matei o meu desejo
É pena que os lábios gelados como os teus
Não sintam o calor que eu conservei nos lábios meus
No teu funeral estás tão fria assim
Ai de mim, e dos beijos meus
Eu te esperei, minha querida
Mas só te beijei depois da vida
No livro Nelson Cavaquinho: Luto e Melancolia na Música Popular Brasileira, o professor do Departamento de Psicologia da UFF (Universidade Federal Fluminense) José Novaes relaciona a obra do sambista ao artigo de Sigmund Freud de 1914, Luto e Melancolia, para diagnosticá-lo então como “melancólico”.
“Freud diz que o luto é um estado ‘normal’, comum, da mente: todos passamos por situações de luto, maiores ou menores, diariamente, por uma perda ocorrida. Só as grandes perdas, no entanto –um objeto amado, uma pessoa querida, um ideal de vida muito acalentado–, é que levam a um estado, mais ou menos prolongado conforme a intensidade da perda, de prostração, abatimento, tristeza, apatia, isolamento; e a pessoa entra então no que Freud chama de ‘trabalho de luto’, até sair desse estado e voltar a se relacionar”, explica.
“A melancolia, diferentemente, é um estado ‘patológico’ da mente-, caracterizada por tristeza e abatimento profundos, depressão avassaladora, que pode levar ao suicídio, como relatado comumente nos casos clínicos. Isso se deve, segundo Freud, à existência na melancolia de um sentimento que não está presente no luto: a perda da auto-estima, causada por um sentimento de culpa esmagador, que leva frequentemente a pessoa a pedir punição, ou a se auto-punir –pelo suicídio, por exemplo.”
O psicólogo observa que as caracterizações freudianas não dão conta, porém, da riqueza e da complexidade da obra de Nelson Cavaquinho e recorre, no livro, a outros autores, como Walter Benjamin e Susan Sontag, para tentar “decifrá-lo”. “Creio que se possa, especulando um pouco, ver no episódio da gripe espanhola, que tanto marcou Nélson Cavaquinho, um daqueles que ajudaram a sedimentar seu espírito como o de um melancólico”, diz.
O melancólico, para Benjamin, sente um terror profundo pela ideia da morte –algo que Nelson Cavaquinho sempre negou em entrevistas, entrando em contradição com sua mais célebre anedota. Uma noite, o sambista sonhou que morria às 3 da madrugada. Ficou de tocaia do lado do relógio e o atrasou até meia-noite, repetindo isso até de manhã para fugir à hora fatal. Driblou a morte até 1986, quando enfim foi-se embora deste mundo, aos 74 anos.
Quando eu passo
Perto das flores
Quase elas dizem assim:
Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim…
(Conheça e apoie o projeto Jornalistas pela Democracia)
Participe da campanha de assinaturas solidárias do Brasil 247
Nenhum comentário:
Postar um comentário