domingo, 16 de agosto de 2020

PSICANALISE : Uma utopia em realização no meio do caos




Em « As ideologias do desejo, utopias e inconsciente político », Horus Vital-Brazil, psicanalista já falecido, grande por seu fazer psicanalítico, erudição, e modéstia, afirma que a psicanálise, tanto em intenção quanto em extensão, é uma teoria emancipatória por excelência, e que esta emancipação começa com o reconhecimento de que no mundo vivido das significações nada existe que não seja social e histórico, e que tudo é, em última análise, político. Esta psicanálise emancipatória, inclusive do social não se recusa a considerar valores, e se embrenha na dimensão social como uma forma de análise crítica. Ao que eu gostaria de acrescentar, podendo ultrapassar-se como teoria crítica da cultura, na construção comum com outros saberes de uma clínica da cultura, na qual se trata o laço social falido pela invenção de formas vinculativas de sociabilidade, ao reunir ética e política, em torno de seu construto fundamental – o inconsciente.


Por Glaucia Dunley                                                                                                     16/08/2020 13:04

Esta instância psíquica, o inconsciente, pode ser qualificada de política, uma vez que, através dela, se tecem trans-individualmente os laços sociais que nos determinam, à nossa revelia, sendo eles também responsáveis pelos incontáveis paradoxos aos quais estamos submetidos em nossa interação diária com o outro. O outro como aquele que não será nunca inteiramente conhecido, ou assimilado por qualquer forma de apropriação, e que, portanto, permanecerá para sempre fora de controle, suscitando em sua direção as forças de expropriação, de dominação e de aniquilamento por parte do outro homem e das instituições que privilegiam o poder pelo poder. Forças que se expressam através das mais variadas formas de violência, inclusive na violência monopolizada e protagonizada crescentemente pelo Estado, ou pelas formas cruéis e oficiosas do racismo de Estado (Foucault, 1973).

A psicanálise está sempre em crise, o que, em grego antigo, significa que ela está sempre em condições de emitir juízos, julgamentos e decisões, e não de se omitir, afastando de si o ceticismo da neutralidade. Isto supõe que ela possa construir, na fronteira com outros saberes e práticas, um presente e um porvir norteado pela direção de Justiça – que não é o mesmo que Direito -, abrindo-se às experiências emancipadoras da ordem hegemônica neoliberal que acontecem em todo o mundo, mais precisamente a partir dos anos 1980, quando se acirraram as desigualdades e a violência impingidas a praticamente a todo o mundo capitalista pelo desejo desenfreado de poder de uma única nação.

Para poder se assumir como participante crítica dos processos contra-hegemônicos, ou ainda como campo de resistência à supremacia do capital e ao seu séquito de mazelas, que se apropriam do social tanto da forma mais explícita quanto da mais capilar ou infiltrante, a psicanálise precisa continuar efetuando um salto sem garantias em direção a outros campos do saber e de suas respectivas práticas, para engajar-se eticamente com eles nessa transformação necessária do planeta, ou melhor, compulsória, exigida pelos grandes desafios contemporâneos, principalmente os referentes aos acontecimentos cruéis de nosso tempo.

Sendo a crueldade psíquica o próprio da psicanálise (Derrida, 2001), isto talvez a habilite a exercer uma função mediadora destes acontecimentos, procurando articular-se com outros campos, e desencadear transformações, mutações, efeitos de toda ordem, a partir de trocas ou de interlocuções realmente transversais. Isto é, trocas da ordem da transdisciplinariedade, sem hegemonias, onde o que está em questão não é mais um saber particular que se coloca como um fim em si, mas um problema comum, que afeta a todos e, portanto, exige uma responsabilidade coletiva dos diversos saberes na sua elucidação e encaminhamento.

Trata-se de fazer uma clínica da cultura: do estigma, do preconceito, da segregação em relação ao povo negro e afro-descendentes, assim como aos pobres oriundos das ondas de migração das regiões Norte e Nordeste para o Sudeste em busca de uma vida menos miserável, estabelecendo-se nas favelas e periferias. Tendo passado, desde os anos 60, pela política cruel de remoção, com caminhões que chegavam de madrugada para “retirar” as pessoas de suas casa e levá-las para longe, marcando o início do descarte dos indesejáveis, pela falta de saneamento básico, de assistência à saúde como política de Estado mantida, pela total exclusão das trocas com a capital do Estado do Rio de Janeiro e outros municípios, falta de acesso aos bens materiais e imateriais (entre eles a educação de qualidade e a cultura), passamos rapidamente na virada do milênio ao genocídio de Estado dos povos favelados, não sendo mais possível esconder esta necropolítica sob o pretexto das perseguições e blitz policiais (civil e militar) aos narcotraficantes, das balas perdidas, dos autos de resistência. “Eles” (bandidos de várias laias) acertavam sempre jovens negros, crianças, desesperando famílias que, abandonadas a própria sorte, transformaram luto em luta, como foi o caso do Movimento Moleque, fundado por Mônica Cunha em 2006, depois do assassinato pela polícia de seu filho Rafael de 15 anos, que já era ativista dos Direitos Humanos desde 2003. Todo o aparato empregado pelas forças de “segurança pública” era e é de terror (o sinistro Caveirão que chega de surpresa com gritos ensurdecedores dos policiais vestidos de caveira), o assassinato de Marielle Franco na noite de 14 de março de 2018, em plena cidade, vereadora, favelada, socióloga, porta-voz flamejante de várias minorias, crime até hoje não esclarecido devido à sua implicação com forças milicianas ligadas à máfia Bolsonaro. Virou ícone mundialmente das lutas contra a violência de Estado, de gênero. Marielle Presente!

O ápice deste terrorismo de Estado foi marcado na vigência da pandemia pelo novo coronavirus. Além da negação, da falta de política de combate à pandemia, da irresponsabilidade do presidente em suas declarações e decisões em tudo opostas aos países civilizados e à OMS, o presidente recheou o Governo e principalmente o Ministério da Saúde com quadros militares, e tem conseguido manter por mais tempo o atual Ministro Interino da Saúde, um general que obedece ordens de um capitão desvairadamente fascista. Além de toda essa indecência com o povo em geral, ainda manteve, junto com o outro genocida, o governador do Rio de Janeiro, a política de morte nas favelas e periferias até que esta barbárie a mais foi coíbida... “durante a pandemia”.

Do meio do caos desta pandemia e do pandemônio fascista que nos torna reféns, gostaria de retomar o pensamento e as ações pela construção de um novo tempo, muito além do ceticismo pós-moderno, um tempo de utopias, que se move em outras direções, buscando e encontrando o novo que surge subversivamente onde menos se espera: nos movimentos sociais que nascem nos espaços periféricos, pobres, nas favelas dos países emergentes, como o nosso, apresentando-se como poder performativo das multidões destituídas, que afirmam a vida e os valores democráticos. Entre eles, o acesso ao saber através da cultura e da educação, partilhando com o restante da sociedade aquilo que é patrimônio nacional, e, portanto, comum, e endereçado a todos.

Foi assim que percebi e vivi a rica experiência da Maré, através da Ong Ceasm, Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, nos anos 2004-2008, e que hoje, 14 de agosto, festeja seus 23 anos de lutas e conquistas. Seu Curso Pré-Vestibular Comunitário foi o pilar de fundação da Ong e responsável pela entrada na universidade pública de milhares de jovens favelados, anteriormente à política de cotas.

Devo confessar que fiquei maravilhada com o brilho daquela experiência auto-emancipatória, que deu acesso à educação, à cultura e à política a centenas de jovens. Organizou-se em redes (Memória, Educação, Comunicação, Trabalho e renda, Observatório Social), e fundou o Museu da Maré em 2006 – primeiro museu nacional em favela. Fiquei encantada e grata pela recepção amiga que me deram, como pessoa interessada na experiência deles, interessados em trocar, muito mais do que pelo fato de eu estar realizando um pós-doutoramento na Escola de Comunicação da UFRJ. O que me levou a cunhar posteriormente a expressão Resistência da Hospitalidade, qualificando assim o tipo de resistência ao aniquilamento pelo Estado que eles faziam: generosa, hospitaleira, aberta aos chegantes.

Pensei, então, naquela época de abundância, em que Gilberto Gil era Ministro da Cultura (salve!), e o Museu foi realizado pelo esforço coletivo e democrático dos mareenses, e por um Estado que estabeleceu Políticas Públicas de Cultura, como a do Ponto de Cultura (caso do Museu), o quanto aquela liderança cultural e transformadora do território, abandonado pelo Estado aos bandidos de todas as facções do tráfico de drogas, em muito se diferenciava das estratégias mortíferas que lhes foram endereçadas pela trama oficial e oficiosa do extermínio, da exclusão da qual são e foram vítimas, do racismo de Estado que escolhe as populações descartáveis, matáveis. Foi, portanto, muito surpreendente ver como estas multidões transformaram o horror de sua existência em realidades múltiplas e ricas, laboriosas, e antes de tudo, vitais, integradoras e agregadoras, subvertendo a posição subjetiva de vítimas para a de sujeitos ativos, criativos, jamais ressentidos...

Os tempos mudaram, para pior, a pobreza e a precariedade voltaram desde o golpe de 2016, ninguém é de ferro. Com Bolsonaro, o pior veio à tona, o ódio e o ressentimento de todos nós, inclusive dos oprimidos, que outrora me encantaram com sua parceria generosa.

Vejo como muito corajosa a atitude de pessoas de campos diferentes, brancos e negros, que se uniram há um ano para construir uma utopia, revolucionária na história do jornalismo brasileiro em TV: dar voz às favelas no TV PORTAL DAS FAVELAS que estreou em 12 de agosto, dentro de uma mídia alternativa (TV 247), mas dirigida e ocupada preponderantemente até julho passado por brancos, graduados, pós-graduados, em fim, por gente muito valorosa mas que não tem que correr de bala todos os dias, ou teve filho adolescente ou criança assassinado pela polícia. A psicanalista Mariana Mollica, Rumba Gabriel, Orlando Guilhom, Cláudio da Mangueira, Carla Grigório, Cláudia Rose, Bárbara Nascimento, Lourenço Cesar, e outros, recebendo o apoio de participantes do grupo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD), do qual faço parte, conseguimos introduzir esta diferença no estado de silenciamento e de invisibilidade que marca a vida das pessoas que moram nas favelas e periferias do Rio. Um acontecimento histórico, jubiloso! Que alegria dá ver rostos radiantes na TV podendo falar de suas vidas, de suas lutas, de suas conquistas. É um mundo novo que se abre para todos, de uma inclusão soberana.

Gilberto Gil nos emocionou extremamente nesta inauguração da TV Portal das Favelas, em 14 de agosto, quando deu uma cidadania espiritual a todas as negras e a todos os negros das favelas. NÓS JÁ SOMOS! NÒS TEMOS A TOTALIDADE DO EXISTIR. Precisamos trabalhar pelas eventualidades, pelos acasos, deixando vazios os vazios e não nos preocuparmos em preenchê-los com pautas e agendas. Porque nós já somos! Temos a lágrima emocionada do excluído, que não é excluído do VIVER, pois dele evapora a água da vida! Ao nosso penar, aos nossos apartheids e apartamentos, precisamos juntar nossos fazeres simples, valorizar a nossa existência, nossa ancestralidade, nossa espiritualidade que dá nossa diferença existencial.

Também emocionado com esta fala performática de Gil, “quando dizer é fazer”, pois Gil fez UMA ALFORRIA EM MASSA (de negros e brancos), Luiz Eduardo Soares se refere ao poema “A máquina do mundo”, de Drummond, valorizando a vida que emerge com força de acontecimento, como um momento de revelação, quando então deverá haver a graça da acolhida e o fazer da gratuidade. Veremos abaixo que nem tudo são flores e que é preciso haver coragem para enfrentar e compor com as diferenças intersubjetivas e superar os conflitos históricos entre negros e brancos, de lutas pela hegemonia ou protagonismos, mais afiadas por estes tempos de penúria.

Pergunto se podemos pensar esta utopia em realização, que tem como base o horror da violência de Estado, o conflito de classes, quatro séculos de escravidão, um estado racista e genocida, como uma sublimação dos impulsos cruéis de dominação e aniquilamento por um lado (o da força bruta do Estado e das camadas escravocratas, racistas e fascistas da nossa sociedade), e também de sublimação do ressentimento e de desejo de retaliação mesmo que inconscientes dos oprimidos. Interpelando de vez o mito do brasileiro cordial, inclusive de onde nasce o samba, e não simplesmente considerando uma sublimação reparatória pelos danos causados às populações negras pela hegemonia branca. Isto não seria fazer justiça à universalidade de nossos daimons, Eros e Tanatos, ou, em outras palavras, ninguém passa por isso tudo impunemente, oferecendo a outra face ou a mão. Isso terá que ser uma conquista de ambos os lados.

Acho importante nesta bifurcação, que nos abre ou fecha caminhos, lembrar nesse sentido a fala de Martin Luther King, no discurso histórico de 1963, no Lincoln Memorial, em que ele coloca a igualdade dos direitos civis acima de qualquer protagonismo de um ou outro grupo. Brancos e negros juntos!

“A nova e maravilhosa militância que tomou conta da comunidade negra não deve nos levar a suspeitar de todas as pessoas brancas, pois muitos de nossos irmãos, conforme evidenciado por sua presença aqui hoje, acabaram por entender que seu destino está vinculado ao nosso destino. Assim como o nosso está vinculado ao deles. Eles perceberam que a liberdade deles está vinculada indissociavelmente à nossa liberdade. Não podemos caminhar sozinhos. E, enquanto caminhamos, precisamos fazer a promessa de que caminharemos para frente. Não podemos retroceder. Há quem esteja perguntando aos devotos dos direitos civis 'Quando vocês ficarão satisfeitos?’. Jamais estaremos satisfeitos enquanto o negro for vítima dos desprezíveis horrores da brutalidade policial. Jamais estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados da fadiga de viagem, não puderem hospedar-se nos hotéis de beira de estrada e nos hotéis das cidades. Não estaremos satisfeitos enquanto a mobilidade básica do negro for apenas de um gueto menor para um maior. Jamais estaremos satisfeitos enquanto nossas crianças tiverem suas individualidades, dignidades e vidas roubadas’. Jamais estaremos satisfeitos enquanto um negro no Mississippi não puder votar, e um negro em Nova York acreditar que não tem nada em que votar. Não, não estamos satisfeitos e só ficaremos satisfeitos quando a Justiça rolar como água e a retidão correr como um rio poderoso. Sei que alguns de vocês aqui estão vindos de grandes provações e atribulações. Alguns vieram diretamente de celas estreitas de prisões. Alguns vieram de áreas onde sua busca pela liberdade os deixou feridos pelas tempestades da perseguição e marcados pelos ventos da brutalidade policial. Vocês têm sido os veteranos do sofrimento criativo.”

Sejamos criativos juntos! Trata-se então de desejar, autorizando, que se crie uma ética do comum, capaz de destituir supremacias, sejam elas da ordem do saber ou do poder econômico de certas nações sobre outras, de certas populações sobre outras, criando outras formas de vínculo, formas coletivas de vínculos, como esta forma de comunicação vinculativa, e não apenas informacional, que está sendo construída em mão-dulpa pela TV Portal das Favelas.

Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2020

Glaucia Dunley é psicanalista, mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ), doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ), pós-doutoramento em Comunicação (UFRJ), em Teoria Social (UFRJ), pesquisadora-visitante Letras/UFRJ; escritoraCarta Maior

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