sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Um novo ano com renovadas esperanças e velhas prevenções para a esquerda


O ano de 2021 terminou com vários resultados eleitorais esperançosos para a esquerda da Nossa América: no Peru, em Honduras, no Chile e na Nicarágua. Junto com eles, podemos somar os obtidos em anos anteriores, no México em 2018, na Argentina em 2019 e na Bolívia em 2020. De todos esses, podemos tirar algumas conclusões e reflexões preliminares:



Por Carlos Flanagan                                                                                   27/01/2022 16:08

1.- Os resultados favoráveis alcançados nas urnas não surgem de nenhum chapéu mágico nem são obra do acaso. São a expressão eleitoral da consciência forjada e acumulada no calor das mobilizações de massa de protesto. As grandes mobilizações contra as políticas aplicadas pelos governos neoliberais durante o ano de 2019, que foram a principal causa desses resultados eleitorais, apesar dos parênteses impostos pela pandemia em 2020.

2.- Em linha com o exposto, as próximas eleições presidenciais deste ano na Colômbia (29 de maio) e no Brasil (2 de outubro) são de grande importância. Uma provável vitória de Lula no Brasil, novamente como candidato presidencial do PT (Partido dos Trabalhadores), dado o peso específico do gigante do continente, faria pender a balança a favor dos governos progressistas na América do Sul.

Por outro lado, no âmbito do Mercosul, em coordenação com a Argentina, poderiam impor uma agenda visando avançar na direção de uma integração regional fortalecida e soberana; contrária à visão que os governos de direita do Uruguai e do Paraguai têm de uma mera zona de livre comércio sujeita às grandes potências.

Da mesma forma, devemos acompanhar com atenção o processo eleitoral na Colômbia, no qual Gustavo Petro, o candidato da esquerda, tem certas possibilidades de triunfar. Essa vitória seria um golpe muito pesado para os Estados Unidos e seus aliados da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), pois perderiam sua principal plataforma de intervenção no continente. Também significaria um golpe de misericórdia para o já falido Grupo Lima.

3.- Entrando em conclusões de natureza mais geral, reafirmamos a convicção de que o desenvolvimento histórico não é de todo linear, regido por uma sucessão sistemática de etapas; na qual uma etapa progressiva seria necessariamente sucedida por uma conservadora e vice-versa, como alguns supõem. Ao contrário, os processos históricos nas sociedades são caracterizados por avanços e retrocessos contínuos. Eles estão diretamente relacionados às correlações de forças existentes na luta entre as diferentes classes sociais.

Hoje, se ratifica mais uma vez a validade da afirmação de Karl Marx e Federico Engels de 1848: “a história de todas as sociedades que existiram, até nossos dias, é a história das lutas de classes” – Manifesto do Partido Comunista: primeira frase do capítulo I “Burgueses e Proletários”.

As várias crises capitalistas

O capitalismo, em sua já longa existência de mais de cinco séculos, passou por várias crises, de intensidade e duração diferentes. Crise de superprodução, como a do final do Século XIX; a do final da Década de 1920 e início da Década de 1930; ou a de 2008, só para citar algumas.

Porém, além das suas características específicas e das suas consequências políticas e sociais – por exemplo, duas guerras mundiais para reajustar a hegemonia imperialista –, são todas de natureza sistêmica, inerentes à própria essência do capitalismo, suas contradições intrínsecas e a inevitável tendência de queda da taxa de lucro.

São crises cada vez mais graves, de natureza estrutural. Mas de forma alguma poderíamos dizer que estamos diante de uma crise final do sistema capitalista. Em suma, para além da esperteza do jogo de palavras, por causa do exposto, não estamos diante de uma mudança de tempo em particular – entendida como uma mudança de sistema –, nem em um tempo de mudanças em particular.

Todos os tempos – através da luta de classes – são e serão de mudanças: a favor de certos setores sociais e em detrimento de outros.

Uma alternativa de ferro

Essas crises estruturais forçam a classe dominante a aumentar a taxa de exploração sobre os trabalhadores (mais-valia), como única forma de manter seus lucros. Daí seu compromisso político de estabelecer governos que apliquem uma estratégia neoliberal de dominação que englobe todos os aspectos da vida social: econômico, político, militar, cultural.

A privatização de empresas estatais estratégicas, que passam a integrar grandes conglomerados transnacionais, passa a ser incentivada. Ao mesmo tempo, as políticas sociais dos estados são reduzidas ao mínimo, desmontando o chamado “Estado de bem-estar” dos principais países ocidentais, apresentado como modelo de desenvolvimento a ser seguido pelos países dependentes da América Latina e do Caribe.

Esse estado de coisas levou, por um lado, às crescentes mobilizações de protesto e, por outro, a expressões de xenofobia, que prepararam o cenário tanto para o estabelecimento de governos de extrema-direita, como na Bulgária e Hungria, ou que partidos de extrema-direita passem a formar parte de coalizões governamentais, como na Letônia e na Estônia - ou que, antes disso, liderem as pesquisas para as próximas eleições, em países como Itália, Suécia e Eslovênia.

Consequentemente, em perspectiva, vislumbra-se cada vez mais claramente uma alternativa de ferro para a humanidade: o socialismo ou o neofascismo.

Alguns esclarecimentos necessários

Muito se falou, e ainda se fala sobre o socialismo. Vários “sobrenomes” são frequentemente agregados a ele, como “revolucionário”, “democrático”, “Século XXI”, etc. De fato, sua descrição como uma organização social em que a propriedade coletiva dos meios de produção, sua administração e distribuição estão nas mãos do Estado socialista, em busca do bem comum, fica em segundo plano.

O socialismo nasceu plebeu; sem “sobrenome”. É o que é por sua própria essência revolucionária e democrática; ou não é socialismo. É e será do século e do lugar específico onde surge; sempre com características próprias e, portanto, intransferíveis.

As velhas precauções

Essas conquistas eleitorais (reconquistas em alguns casos) de partidos ou coligações de setores progressistas, que sempre serão avanços democráticos contra o neoliberalismo vigente, nos levam a nos perguntar se, em circunstâncias semelhantes, as mesmas insuficiências e erros já cometidos se repetirão.

Em muitos casos, a vitória ocorre no segundo turno. Mecanismo bastante questionável, pelo qual os dois candidatos presidenciais mais votados em primeira instância, mas que não obtiveram maioria absoluta, decidem entre si a presidência em uma segunda votação.

Para alcançar a vitória, eles não hesitam em buscar o apoio dos partidos derrotados que consideram mais próximos. Isso leva a negociações febris, que sempre se traduzem em concessões políticas, sejam posições no governo ou modificações em seu programa.

Assim, o candidato, comprometido com essas negociações e com o pretexto banal de conquistar o eleitorado do centro, acaba moderando seu discurso no segundo turno; arquivando as bordas esquerdas que a mesma poderia ter na primeira. Em suma, vale nos perguntar: qual será a proposta do governo a ser aplicada? A do primeiro ou a do segundo turno?

As declarações infundadas e infelizes de Gabriel Boric, presidente eleito do Chile, sobre Cuba, Nicarágua e Venezuela, são preocupantes, na medida em que podem ser um exemplo dessa dicotomia. Soma-se a isso a fragilidade de não possuir maiorias parlamentares próprias; que obrigará o governo eleito a negociar cada projeto de lei com diferentes setores da oposição, para poder obter os votos necessários para sua aprovação em cada câmara. Não é preciso dizer que os problemas são ainda maiores quando a disciplina partidária mínima não pode ser mantida nem mesmo na própria bancada parlamentar.

Em Honduras, a traição de 20 parlamentares do partido Libre (Liberdade e Refundação) durante a eleição da presidência do Congresso – consequência do compromisso anteriormente assumido pela futura presidenta Xiomara Castro com seus aliados – é um exemplo escandaloso.

Diante de tudo isso, será um grande desafio implementar medidas substantivas, que curem as feridas produzidas pelo neoliberalismo no tecido social, fortalecer as empresas estatais estratégicas, promover atividades produtivas e desenhar planos de distribuição da riqueza gerada.

Mas, para que estas sejam eficientes e irreversíveis, será preciso, entre outras coisas, uma profunda reforma fiscal, que tribute substancialmente aqueles que têm mais, que combata os juros e a especulação de preços, e que estimule a revalorização salarial e as atividades que geram novos empregos.

Levando em conta as limitações mencionadas, destaca-se o desafio de alcançar uma hegemonia social que garanta o bom andamento do processo de mudança. Isso será possível se tivermos o apoio consciente dos sindicatos e movimentos sociais mobilizados e em estado de alerta. Essa tarefa primordial não corresponde ao governo como tal, mas à força política que governa.

Até agora, em quase todos os processos progressistas, cometeu-se o grave erro de manter a força política e seus principais quadros dirigentes dedicadas exclusivamente às tarefas governamentais. Dessa forma, essa força política ficou presa da gestão de governo e não pode realizou as tarefas próprias, junto aos sindicatos e organizações sociais, que garantiriam a hegemonia do projeto.

Faltou, portanto, quem fizesse o trabalho de divulgar e explicar os objetivos do governo, não apenas como informação à sociedade em geral e prestação de contas à militância, mas como forma de educação política de massa – isso é especialmente relevante na relação com as classes médias.

A integração regional era outra obrigação dos governos progressistas. Embora o tema estivesse sempre presente nos discursos e na construção de instituições como Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e CELAC (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), a compensação econômica que as faria funcionar plenamente precisava ser consolidada.

O Banco do Sul foi criado em setembro de 2009 e teve sua primeira reunião em 2013. Esse projeto de criação de uma instituição que, como banco de desenvolvimento, apoiaria a integração regional, libertando-nos do FMI (Fundo Monetário Internacional) e do Banco Mundial, foi promovido por Néstor Kirchner e contou com o apoio um forte e imediato de Lula da Silva. Foram constituídos como membros Argentina, Brasil, Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela. Chile e Peru participam como observadores, enquanto a Colômbia nunca aderiu.

Mais tarde, em março de 2020, o governo uruguaio decidiu se retirar da organização, alegando que o país “não integrará iniciativas baseadas em afinidades ideológicas”. Na verdade, nunca funcionou, pois do capital inicial de 20 bilhões de dólares que deveria ter, só conseguiu levantar menos de 7 bilhões, com contribuições de Argentina, Brasil e Venezuela (2 bilhões cada), Equador (400 milhões), Bolívia e Paraguai (100 milhões cada).

Onde o progressismo quer chegar?

As indicações dos erros e insuficiências que os governos progressistas tiveram em nossa região não são novas. Alguns deles foram mencionados em alguns (ainda poucos) documentos de balanço autocrítico de alguns setores.

Mas o tempo passa e, mesmo antes da perspectiva de recuperação do governo a curto e médio prazo em muitos de nossos países, a esquerda ainda não promove a discussão real e substantiva sobre a razão fundamental subjacente a esses erros e deficiências tantas vezes apontados: que tipo de sociedade nós propomos para superar este atual modelo capitalista, explorador, discriminatório e excludente, no qual vive a grande maioria da população?

Não é que não existam áreas de intercâmbio e coordenação desses partidos de esquerda e progressistas para realizá-lo. O Foro de São Paulo, criado para esse fim na Década de 1990, quando a ofensiva neoliberal se intensificava, dada a sua representatividade, seu poder de convocação e seu funcionamento sistemático, talvez seja o mais adequado para isso.

Esta discussão existe como uma velha contradição desde o final do Século XIX, às vezes soterrada, outras vezes mais explícita, e com a qual Rosa Luxemburgo intitulou uma de suas obras e contribuições fundamentais: “Reforma ou revolução”.

Resumindo: há setores dentro do progressismo que consideram possível retroceder, por meio de reformas parciais, a um chamado “capitalismo com rosto humano”, como o já mencionado modelo existente em alguns países ao final da Segunda Guerra Mundial para competir com os países socialistas? Seria bom se fosse explicitado para discussão.

Outros de nós consideram que isso não é possível, e que devemos avançar – nas formas e nos tempos, de acordo com as condições de cada país – para um modelo de sociedade que supere o capitalismo: o modelo socialista. Para o bem de todos, por favor, devemos discutir isso.


Carlos Flanagan é membro da Comissão de Assuntos e Relações Internacionais da Frente Ampla do Uruguai, ex-embaixador uruguaio na Bolívia e colaborador do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

*Publicado originalmente em estrategia.la | Tradução de Victor Farinelli


Carta Maior

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