quarta-feira, 19 de outubro de 2022

O bolsonarismo no comando do Cade

Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

A lista de decisões emblemáticas é longa e apresenta casos que ficaram para a história como equívocos inexplicáveis pela ótica da legalidade


18 de outubro de 2022, 18:30 h Atualizado em 18 de outubro de 2022, 19:14

Paulo Kliass

O Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE) deveria ser um órgão respeitado e tratado com muito carinho pelos diferentes governos que estiveram à frente do Estado brasileiro. Afinal, trata-se de uma instituição cuja missão principal é zelar pelo respeito à concorrência econômica e impedir que a concentração excessiva de poderes de mercado se torne prejudicial à maioria da sociedade.

No mês passado, a autarquia federal completou 60 anos de existência. Ao longo destas 6 décadas, houve diversas alterações em sua legislação, tendo sido a última efetuada em 2011. Naquele momento, por meio da aprovação da Lei nº 12.529 foi constituído o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, em que o CADE cumpre papel estratégico. Dentre outras atribuições, caberia ao Conselho as missões de prevenir, punir e educar em todos os aspectos relacionados à garantia de ambientes de concorrência, impedindo a formação de cartéis e outras práticas nocivas à economia e à sociedade, todas derivadas da tendência intrínseca à concentração de capital e à formação de conglomerados e oligopólios.

No entanto, é forçoso reconhecer que qualquer balanço da atuação do órgão desde a sua criação não autoriza uma visão muito positiva. Via de regra, ao longo das diferentes gestões, o CADE tem incorporado em suas decisões o espírito e os interesses das grandes corporações, permitindo que as práticas abusivas e a formação de grupos empresariais superdimensionados sejam “naturalizadas” como inevitáveis e até mesmo saudáveis para o conjunto dos chamados “agentes econômicos”.

Histórico do CADE é tendencioso.





A lista de decisões emblemáticas é longa e apresenta casos que ficaram para a história como equívocos inexplicáveis pela ótica da legalidade ou do bom senso. Em 1996 houve a autorização de uma fusão no mercado de dentifrícios, onde as empresas detentoras das marcas conhecidas e concorrentes obtiveram chancela para unificação em torno do grupo Colgate-Palmolive. Em 2000, teve início a longa novela da concentração no mercado brasileiro de cervejas, com a autorização para a Ambev unificar as marcas concorrentes Brahma e Antárctica. A partir, o número de empresas do setor sob o mesmo controle acionário só fez aumentar sob o guarda-chuvas da Inbev. Em 2002, surge um outro escândalo: a compra da Garoto pela Nestlé, quando uma postura menos liberalizante do Conselho foi parar na Justiça, onde ainda tramita à espera de decisão definitiva. Em 2011, a autarquia autorizou a formação de um importante oligopólio no ramo de produção e comercialização de carnes, por meio da fusão da Sadia e da Perdigão, sob controle da BRF. Em 2020, veio à tona a decisão de autorizar a compra da Embraer pela Boeing no setor aeronáutico.

Esse conjunto de decisões polêmicas e viesadas, no sentido de proteger os interesses das empresas em detrimento da missão de zelar pelo ambiente econômico de concorrência, marcaram de forma simbólica a trajetória do órgão. Assim como ocorreu com demais instituições públicas de regulação, fiscalização e regulamentação setorial, o CADE terminou sendo objeto de processo de “captura”, fenômeno esse em que se verifica a distorção do interesse público em favor do interesse privado, motivada pela enorme pressão do poder econômico das empresas reguladas e de grupos de interesses.

Sob Bolsonaro, a situação se agrava muito.

Porém, desde a posse de Jair Bolsonaro a atuação dos dirigentes do órgão vem sendo objeto de uma apropriação ainda mais escandalosa e criminosa no sentido de favorecer os interesses do governo de plantão. A indicação do atual presidente do CADE, Alexandre Cordeiro, guarda relação direta com sua dependência política junto ao Ministro Chefe da Casa Civil. O senador Ciro Nogueira (PP/PI) se refere ao dirigente como “meu menino”, afirmando sem o menor constrangimento que “eu botei ele lá”. Há poucos meses atrás, o servidor teve seu nome chancelado pelo Senado Federal para um novo mandato à frente do órgão, uma vez que já havia sido aprovado anteriormente para ocupar o cargo de superintendente geral por 2 vezes, desde 2017.

Parece claro que esse tipo de relação promíscua é bastante comprometedor para a administração pública e vai contra todas as normas do princípio da moralidade ou do espírito republicano. A tensão política da conjuntura mais recente terminou por revelar a verdadeira face do atual dirigente máximo do órgão. As ameaças de Jair Bolsonaro contra os resultados das urnas vêm sendo divulgadas há muito tempo. No início foram as bravatas envolvendo uma tentativa de autogolpe com apoio das Forças Armadas, caso o pleito não lhe fosse favorável. Em seguida, vieram as dúvidas lançadas de forma criminosa e irresponsável contra a segurança das urnas eletrônicas, colocando sob suspeição qualquer resultado que não fosse a sua vitória.

Com a aproximação de mês de outubro e a existência de uma unanimidade das pesquisas de opinião e intenção de votos apresentando Lula como o provável vencedor da vontade popular, a estratégia bolsonarista passou a minar a credibilidade dos institutos de pesquisa de opinião. Algumas divergências verificadas na apuração do primeiro turno reforçaram essa estratégia de lançar dúvida sobre a seriedade das empresas. Discursos e projetos de lei buscando a criminalização de tais instrumentos ganharam as páginas dos grandes meios de comunicação. Na verdade, o fato é que o bolsonarismo entrou em modo desespero e passou a apelar ainda mais para o jogo do vale-tudo, uma vez que o risco de ver o seu chefe perder o cargo e a correspondente imunidade judicial a partir do início do ano que vem é cada vez mais real.

“Meu menino” a serviço do bolsonarismo.

Esse é o momento em que entra em cena o garoto de recados do ministro mais importante do governo. Alexandre Cordeiro, se apropriando de forma ilegal e escandalosa da condição de presidente do CADE, determina a abertura de processo de investigação sobre os institutos de pesquisa, para apurar eventual conluio com intuito de favorecer a candidatura de Lula contra Bolsonaro. Uma loucura! O documento protocolado pelo dirigente no processo é um amontoado de declarações ilegais e tendenciosas, que apenas comprometem a qualidade de suas equipes técnicas e escancara a submissão do “menino” a um projeto político de extrema direita e a uma candidatura nas eleições presidenciais.

O dirigente escapa de sua área de atuação e termina por se travestir em um falso especialista em estatística e análise eleitoral, apresentando dados e tabelas relativos às pesquisas e aos resultados oficiais divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O texto é revelador de uma encomenda política específica e fala por si mesmo. Na verdade, beirando o ridículo e o criminoso, ele não procura esconder sua adesão completa ao desígnio bolsonarista:

(…) “A discrepância das pesquisas e do resultado é tão grande que se verificam indícios de que os erros não sejam casuísticos e sim intencionais por meio de uma ação orquestrada dos institutos de pesquisa na forma de cartel para manipular em conjunto o mercado e, em última instância, as eleições” (…)

Ao ultrapassar todo e qualquer limite do aceitável, o dirigente foi imediatamente criticado e questionado pelo próprio Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU). Além disso, a ação do CADE foi segundada por inquérito da Polícia Federal (PF), instituição sob o comando de outro bolsonarista a toda prova, o atual Ministro da Justiça Anderson Torres. Mas, felizmente, esse processo todo de intimidação injustificável foi barrado pelo próprio TSE.

A postura autoritária e aparelhadora do indicado por Bolsonaro no Conselho faz parte do processo geral que o atual governo vem implementando contra as instituições democráticas e contra as organizações da administração estatal de forma ampla. Os próprios servidores do órgão se manifestaram bastante contrariados com a postura do atual dirigente. Ao destruir algumas e desmoralizar outras, o bolsonarismo procura fazer terra arrasada da esfera pública e tenta abrir o caminho para a privatização de todos os espaços em nossa sociedade. Cabe às forças progressistas denunciar mais esta manobra e ampliar o arco de alianças em torno da alternativa democrática no segundo turno do pleito, a única capaz de derrotar o projeto autoritário na sua raiz.

Dia 30 de outubro, estaremos todos unidos contra a barbárie e a favor da civilização. Assim, o CADE poderá eventualmente se reencontrar com sua verdadeira vocação institucional.




Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.


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