A fala de cunho pedófilo de Bolsonaro "não parece ter afetado a disposição de seus seguidores de manter sua fidelidade ao atual governo", aponta Jair de Souza
19 de outubro de 2022, 09:26 h Atualizado em 19 de outubro de 2022, 10:16
Nos últimos dias, com a divulgação do vídeo em que aparece a expressão “pintou um clima”, a podridão moral do bolsonarismo ficou ainda mais evidente do que já estava. Mesmo assim, o impacto da revelação desta e de tantas outras provas de perversão praticadas por destacados próceres bolsonaristas não parece ter afetado significativamente a disposição de seus seguidores de manter sua fidelidade ao atual governo.
O que poderia justificar que certas pessoas que costumam se apresentar como paladinos da família, da moral, dos bons costumes e do cristianismo insistam em manter seu apoio a este governo a despeito de seus líderes exibirem comportamentos depravados e de baixo nível moral, que não encontram nenhum amparo na tradição familiar, moral e religiosa, e que não têm absolutamente nada a ver com os ensinamentos de Jesus?
Mais uma vez, podemos perceber que a essência do problema está vinculada à disputa pela apropriação e distribuição dos frutos do trabalho produzidos em nossa sociedade, ou seja, continua em vigor a velha e conhecida questão da luta de classes.
Ter clareza em relação a isto vai nos possibilitar compreender o que leva a pessoas que se dizem campeãs da moralidade a reconhecer como sua grande liderança alguém que vive produzindo exemplos de comportamento diametralmente opostos aos que elas dizem considerar como padrão de decência e bons costumes.
O vídeo citado no primeiro parágrafo nos põe diante de um caso evidente da mais escancarada hipocrisia. E a hipocrisia não existe simplesmente por existir. Há fortes indícios de inexplicável contradição quando vemos que a pessoa que é tida como o grande líder da integridade da família tradicional se revele, na verdade, um exemplo de tudo o que os moralistas constantemente dizem abominar. O mais estranho é que, apesar de toda essa incongruência, o nível de seu prestígio entre o público conservador se mantenha inabalado.
Podemos imaginar o que diriam esses mesmos moralistas se fosse o ex-presidente Lula quem aparecesse em um vídeo dizendo que “pintou um clima” quando ele se deparou com meninas refugiadas de uns 13 ou 14 anos. Em tal hipótese, termos como “pedófilo”, “tarado” e “indecente” seriam os mais leves que sairiam de suas bocas. E, com certeza, esta condenação seria externada de modo veemente e peremptório e uma punição exemplar seria exigida. Ou não?
Também precisamos nos lembrar que muita “gente de bem bolsonarista” instigou e vibrou com a cassação do mandato do vereador de Curitiba Renato Freitas por ele ter ingressado numa igreja para fazer um manifesto de repúdio ao covarde assassinato cometido contra um refugiado africano no Rio de Janeiro. A decisão da Câmara Municipal foi uma medida de caráter tão racista e antipovo que acabou sendo revertida pelo STF. No entanto, as mesmas pessoas que a impulsaram e apoiaram concordaram numa boa com as flagrantes agressões bolsonaristas cometidas contra as autoridades religiosas católicas e os fiéis reunidos na Basílica de Aparecida em 12 de outubro. Faz sentido isso?
Para um seguidor sincero de Jesus, não deveria haver nada mais indecente do que observar que seu nome esteja sendo usado para fazer valer propostas inteiramente opostas a tudo o que Jesus pregava no tempo em que convivia junto a sua gente. Por que certos bolsonaristas que se dizem cristãos insistem em apelar ao nome de Jesus para promover causas que Jesus consideraria como diabólicas e contra as quais ele sempre lutou?
Como não existe uma única passagem nos relatos de sua vida em que ele tenha tomado o lado dos ricos e poderosos, o nome de Jesus jamais poderia ser empregado para garantir a manutenção dos privilégios dos mesmos. E ninguém pode negar que para Jesus as causas justas eram exatamente as que visavam garantir direitos e respeito para os mais humildes, ou seja, para o povo trabalhador.
Bem, depois das breves explicações expostas mais acima, vamos ao ponto central que norteia nossa intenção ao escrever este texto. Vamos falar umas palavrinhas sobre a luta de classes.
Por mais que alguns não queiram nem ouvir falar do assunto, todas as ideologias são derivadas das concepções surgidas nos conflitos de interesses das classes existentes nas respectivas sociedades humanas. Tem sido assim desde que a humanidade passou a se estruturar em classes sociais. Foi assim no passado, é assim no presente, e vai ser assim no futuro. Enquanto houver diferentes classes pugnando pelos frutos gerados pelo trabalho do conjunto da sociedade, a luta de classes vai continuar dando o tom da ideologia. E a religião também faz parte da ideologia.
No comportamento do Jesus que encontramos nos relatos de sua vida no Evangelho, a influência dos interesses das classes mais humildes está bem escancarada. Para desespero dos donos das atuais empresas-igrejas da teologia da prosperidade, tudo na vida de Jesus o vincula às aspirações e necessidades das classes oprimidas de seu tempo, da gente mais carente. Jesus teve a grandeza de tentar redirecionar a religião predominante na região em que vivia naquele momento para colocá-la a serviço do povo necessitado com quem compartilhava as dificuldades. Creio ter sido isso o que deu a sua figura a imensa dimensão que ela sempre teve. E, por outro lado, é isso o que também vem fazendo com que as ideias de Jesus sejam odiadas por boa parte das hierarquias religiosas, desde seu aparecimento em cena em pessoa até os dias de hoje.
No Brasil da atualidade, nos deparamos com empresários da fé e padres católicos que se dizem seguidores de Jesus e adeptos do bolsonarismo. São esses que, embora constatem que todos os postulados morais que supostamente orientam sua vida estão sendo violados pelos líderes bolsonaristas, não arredam pé do caminho pelo qual estão sendo conduzidos. Eles agem assim porque os interesses de classe com os quais estão identificados se sobrepõem à superficialidade do moralismo com o qual pretendem se exibir.
Por isso, costumam ficar estarrecidos com condutas morais indevidas praticadas por gente vinculada aos interesses das classes populares. No entanto, não demonstram nenhuma indignação quando elas provêm de quem faz parte de seu grupo de congêneres, ou seja, daqueles também associados com a preservação dos privilégios das classes dominantes.
Como é sabido, as classes dominantes quase sempre têm o poder de impor sua ideologia sobre os demais setores da sociedade. As argumentações que dão sustentação a suas verdades são criadas e estendidas ao restante da sociedade, sempre de acordo com seus próprios interesses. E é com base nesses interesses que são feitos seus julgamentos morais. É por este motivo que não deveríamos nos espantar ao encontrar pessoas de boa condição econômica e alto nível de escolaridade que, mesmo assim, estão dispostos a ter como líder um político cuja monstruosa imbecilidade eles considerariam intolerável em condições normais.
Contudo, quando grupos ou elementos vinculados às classes subalternas põem em risco as bases desses privilégios, tudo será feito para derrotar e extirpar essa ameaça. Em tais momentos, as questões de moralidade, de coerência ética ou de bons costumes perdem serventia e não precisam mais ser seguidas ao pé da letra. Elas deixam de ter valor absoluto. Tudo passa a ser inteiramente relativo.
Os únicos valores que permanecem como eternos e imutáveis são os que dizem respeito aos interesses das classes dominantes. Se, em certas situações, a ordem tiver que ser invertida para que tais interesses sejam preservados, não vai haver nenhum impedimento moral para obstaculizar sua inversão.
Jair de Souza
Economista formado pela UFRJ, mestre em linguística também pela UFRJ
Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.
Brasikl 247
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