Antes o Tempo Não Acabava
Dirigido e roteirizado por Fábio Baldo e Sérgio Andrade. Com: Anderson Tikuna, Rita Carelli, Begê Muniz, Emanuel Aragão, Severiano Kedassere, Fidelis Baniwa, Kay Sara, Ana Sabrina, Arnaldo Barreto, Thiago Almeida.
Antes o Tempo Não Acabava é um filme sobre identidade – ou identidades, já que, em maior ou menor grau, todos nos apresentamos ao mundo de maneiras diversas dependendo do contexto, dos interesses imediatos e do que vivemos até ali. A identidade, claro, também é naturalmente fluida ao longo de nossas existências: mudamos porque crescemos, aprendemos e reagimos ao que nos cerca. Mas há também as mudanças que acontecem por necessidade ou simples desejo de ser outro tipo de pessoa, de ter outra vida.
O protagonista deste longa, o índio Anderson (Tikuna), ilustra um pouco tudo isso: criado em sua vila e tendo participado dos rituais de passagem concebidos por seus anciões, ele agora é um quase adulto que reside em Manaus, trabalha numa linha de produção e experimenta com sua sexualidade. Neste aspecto, as experiências particulares do rapaz o tornam universal, conferindo ao filme em si uma estatura maior do que a de um estudo de personagem (o que é), atuando como uma reflexão sobre grupos diversos e (especialmente) minorias.
Desejando trocar seu nome por um de “homem branco”, Anderson se vê claramente em conflito com suas origens – embora continue a usar o colar que o acompanha desde a infância e tenha conversas com seu xamã que apontam para um respeito ligado à autoridade espiritual deste (por outro lado, é sintomático que, ao ter uma visão envolvendo outro guru espiritual que o presenteia com um talismã, este seja branco). Do mesmo modo, o jovem explora a percepção recém-descoberta de sua homossexualidade ou mesmo de uma inclinação à transexualidade, maquiando-se e entregando-se a experiências sexuais com homens e mulheres (e ambos parecem satisfazê-lo).
Dirigido pela dupla Fábio Baldo e Sérgio Andrade e empregando bem as locações para ilustrar a jornada interior do personagem (é interessante, por exemplo, que sua primeira relação homossexual seja em um barco), Antes o Tempo Não Acabava cria um contraste importante logo no começo ao contrapor a vila do protagonista com o barraco de madeira que passa a ocupar na periferia de Manaus – e se há quem diga, preconceituosamente, que índios não são civilizados (sem compreender que o conceito de civilização é particular a cada cultura), fica difícil não observar que a existência miserável de Anderson em seu casebre que mal se mantém em pé é algo que aponta (aí, sim) para uma falta de civilidade atroz e que é algo ao qual submetemos tantos miseráveis ao redor do mundo em função das desigualdades econômicas e da falta de oportunidades.
E ao colocar-se de pé em um barco no meio do rio e projetar sua voz, Anderson (e o filme) demonstra que, como o eco que se espalha à distância, minorias como as representadas pelo jovem têm potencial para ir longe caso a sociedade lhes dê condições mínimas para isso. O problema é este “caso”.
Texto originalmente publicado durante a cobertura do Festival de Berlim 2016.
26 de Março de 2016
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Sobre o autor da crítica
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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.
Carta Capital
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