As razões que movem a atual tragédia que atinge crianças capturadas na fronteira com o México são tão americanas quanto o Facebook e a Disneylândia e incluem anos de escravidão de negros e matança de indígenas
por Shaun King, no The Intercept Brasil
publicado 23/06/2018 13h04, última modificação 23/06/2018 13h30
'Mulher e criança sobre plataforma de leilão, imagem datada dos anos 1850. Sociedade americana foi forjada sobre a exploração de populações não brancas |
The Intercept Brasil – Como a maioria das
pessoas lendo este artigo, estou completamente estarrecido pelo que vejo
acontecer hoje nos Estados Unidos – crianças, filhos de imigrantes, sendo
arrancadas de seus pais e enviadas a centros de detenção separados, muitas
vezes trancadas em jaulas com estranhos, sem real noção de quando serão
reunidas a suas famílias. É abominável.
Frequentemente, no entanto, vejo dois tipos preocupantes de resposta à
crise, que mostram como milhões de americanos se encontram atualmente alienados
e adormecidos.
O primeiro é uma declaração mais ou menos assim: essa não é a América
que conheço e amo. O segundo é uma pergunta fundada na mesma ignorância, nos
seguintes moldes: como isso pode estar acontecendo nos Estados Unidos?O que
está acontecendo agora no país é, sem dúvida, uma catástrofe de direitos
humanos. Os mecanismos profundamente entranhados nessas políticas e o espírito
que move essa catástrofe, porém, são tão americanos quanto o Facebook e a
Disneylândia.
Vamos por partes. Há pelo menos cinco fatores inquietantes em jogo.
Todos os cinco estavam integralmente presentes antes do início da crise atual.
Eles deram o tom e formaram a cultura onde algo tão hediondo poderia acontecer.
Primeiro, isso já aconteceu aqui antes. A bem da verdade, isso já
aconteceu milhões de vezes ao longo dos anos neste país. Os africanos forçados
à escravidão nos Estados Unidos eram frequentemente separados de seus filhos,
não apenas durante o transporte até as Américas, mas muitas outras vezes, nas
plataformas de leilão. Não foram milhares, e sim milhões de mães e pais,
maridos e mulheres, pais e filhos, irmãos e irmãs separados uns dos outros à
força. E tampouco se tratou de um período curto da história americana, mas de
uma característica institucional da escravidão que perdurou nos EUA por quase
250 anos.
Não apenas as crianças africanas escravizadas eram rotineiramente
separadas de suas famílias, mas também os povos indígenas. Do final do século
XIX até os anos 1970, crianças indígenas eram regularmente retiradas de suas
casas à força e enviadas a desumanas “escolas de índios”, onde seus cabelos
eram cortados e onde eram despidos de seus nomes e culturas. Muitas delas nunca
voltaram a encontrar suas famílias.
O que talvez seja mais chocante, no entanto, é o modo como os EUA –
hoje, neste momento – separam tantas famílias cujas histórias não são
consideradas dignas de nota. Falo da crise do encarceramento em massa, da qual
a investida sobre os imigrantes é apenas mais uma peça terrível.
Agora mesmo, enquanto você lê, centenas de milhares de adultos e
crianças, desproporcionalmente negros e latinos, estão em prisões de todo o
país – não porque tenham sido condenados por algum crime, mas porque não podem
pagar a fiança. Muitos deles irão definhar na prisão sem jamais serem
condenados por um crime, não por dias ou semanas, mas por meses e anos. Na
verdade, cerca de 65% das pessoas nas cadeias municipais dos EUA não foram
condenadas por nenhum crime. Estão na cadeia simplesmente por não conseguirem
pagar a fiança. Elas também estão separadas de suas famílias.
É difícil encontrar um período razoavelmente extenso da história
americana em que pais e filhos não brancos não tenham sido separados uns dos
outros à força pela estrutura branca de poder do país. É normal, de uma forma
lamentável e dolorosa. E é por ser tão normal que é fácil acontecer várias
outras vezes. Esse país é especialista em separar pais e filhos, e fingir que
não é esse o caso é um tipo de revisionismo histórico.
Não é de espantar, portanto, que tantas pessoas de direita – aquelas que
se arrepiam diante da ideia de admitir essa história, ou pior, se desculpar por
ela – estejam encampando uma política de separação familiar forçada.
Na noite de segunda-feira (18), Laura Ingraham, da rede de notícias Fox
News, disse, com um sorriso nos lábios, que as crianças imigrantes presas em
centros de detenção estavam “praticamente numa colônia de férias”. Disse isso a
despeito da realidade de que médicos e associações médicas relevantes em todo o
país já declararam que separar crianças de seus pais à força nos centros de
detenção causa “danos irreparáveis” a elas. E disse isso também a despeito do
áudio dilacerante obtido pela organização jornalística sem fins lucrativos
ProPublica, em que se ouvem crianças detidas chorando aos berros, chamando seus
pais e sendo ridicularizadas pelos guardas.
Quase 60% dos republicanos aprovam a prática de separar crianças
imigrantes de seus pais na fronteira, e não é difícil entender os motivos.
Já há alguns anos Donald Trump vem aproveitando todas as oportunidades
de desumanizar os latinos que atravessam a fronteira, chamando-os
frequentemente de animais, assassinos e estupradores. Ele reduziu nações não
brancas inteiras a “países de merda”. Na segunda-feira (18), reiterou esse
entendimento, ao dizer que os imigrantes eram provenientes dos “lugares mais
perigosos do mundo”.
Essa etapa essencial, de reduzir imigrantes a um status sub-humano, não
pode ser ignorada. Ela aconteceu durante o comércio transatlântico de escravos.
Aconteceu durante o genocídio dos nativos americanos. Aconteceu durante o
Holocausto. Aconteceu durante o genocídio de Ruanda. Acontece hoje com as
vítimas de violência policial.
Sempre que um grupo de pessoas sofre opressão e horrores inomináveis, os
grupos no poder primeiramente as reduzem e desumanizam, de forma a aliviar a
consciência dos poderosos enquanto dure a opressão. É assim que Ingraham
conseguiu comparar os centros de detenção a “colônias de férias”. Ela se
convenceu de que os Estados Unidos estão fazendo um favor a essas crianças
“sub-humanas”.
No cerne da atual crise de direitos humanos nas fronteiras americanas
estão a supremacia branca e o preconceito. Trump não tem um problema com
imigrantes. Sua mãe era uma imigrante escocesa. Todos os seus avós foram
imigrantes. Sua primeira esposa, Ivana, veio como imigrante de onde hoje é a
República Tcheca; os filhos de Trump com ela – Donald Jr., Ivanka e Eric – têm
uma mãe imigrante. A terceira esposa de Trump, Melania, é uma imigrante da Eslovênia.
Ela adquiriu a cidadania em 2006. O filho dos dois, Barron, tem uma mãe
imigrante. Assim, Trump não odeia imigrantes. Mas ele aparentemente odeia
imigrantes não brancos, e essa distinção é essencial.
Os pais de Melania Trump são beneficiários do que Trump e a direita
chamam de “migração em cadeia”. Eles estão legalmente nos Estados Unidos em
razão do parentesco com ela. Trump e os conservadores se insurgem contra essa
política, mas seus pais, avós e parentes por afinidade se beneficiaram dela. Se
a direita odiasse os imigrantes, Trump provavelmente seria uma das figuras
públicas mais detestadas do país por esse motivo. No entanto, muitas das
pessoas de direita – como todos nos EUA, menos os nativos americanos – são elas
mesmas descendentes de imigrantes. O problema delas não é com os imigrantes; é
com os imigrantes não brancos, venham eles do México, das Américas ou de
qualquer um dos países muçulmanos que Trump incluiu na lista de proibições.
Aproximadamente 11.200 crianças estão em abrigos militares |
Supremacia branca e preconceito comandam muitas políticas americanas.
Stephen Miller, importante consultor político de Trump, vem mostrando
tendências preconceituosas desde o tempo de escola. E agora se diz que ele foi
o principal autor, tanto da proibição de muçulmanos, quanto da nova política de
separar de seus pais as crianças imigrantes. Vivemos numa época em que os
crimes de ódio estão em ascensão nos Estados Unidos. Supremacistas brancos
estão concorrendo a cargos eletivos em número recorde.
Há dois outros fatores essenciais em jogo com relação ao que estamos
vendo se passar agora na fronteira. Precisamos falar sobre essas coisas para
realmente entender o que está acontecendo, para ver como chegamos a esse ponto.
A primeira é o fato de que os Estados Unidos são o país do
encarceramento. Nenhum país do mundo encarcera mais pessoas. Há regularmente
cerca de 2,3 milhões de pessoas em cadeias e presídios nos EUA, em qualquer
momento, e pelo menos 10,6 milhões são colocadas nessas instituições todo ano.
Os Estados Unidos criminalizaram a pobreza, empurrando as pessoas para a cadeia
caso não tenham condições de pagar as tarifas básicas, sejam multas de trânsito
ou administrativas, ou fianças. Os Estados Unidos criminalizaram o vício em
drogas, mandando milhões de pessoas para cadeias e presídios há décadas, por
simples porte de drogas. Esse país criminalizou a doença mental. Dois milhões
de pessoas com doenças mentais são presas a cada ano.
Era só uma questão de tempo até serem criminalizadas e enjauladas as
pessoas que pedem asilo nas fronteiras dos EUA. É o que esse país faz. Em vez
de resolver nossos problemas mais difíceis, aumentamos as forças policiais,
construímos mais cadeias e presídios, inclusive provisórios, se necessário, e
prendemos pessoas – especialmente pessoas não brancas.
Por fim – e isso é fundamental – o que vemos acontecer agora nas
fronteiras tem tudo a ver com a privatização e a lucratividade das cadeias e
dos presídios dos EUA. É uma indústria enorme e bilionária. Esse país negocia
ações de empresas cujo negócio é lucrar em cima do encarceramento em massa – há
uma margem de lucro sobre a construção e a administração de abrigos
emergenciais e instalações provisórias como as que estão sendo montadas
atualmente para prender crianças e famílias imigrantes. Não apenas esses
lugares precisam de pessoal e de segurança, mas também a alimentação, a limpeza
e os suprimentos têm custos exorbitantes.
Os mesmos conservadores que fazem campanhas pelo corte de custos e pela
redução dos déficits não veem problema em gastar vários bilhões de dólares no
encarceramento em massa. Executivos da indústria das prisões privadas estão vendo
seus lucros explodirem no governo de Trump, e ele tem sido fartamente
recompensado com doações de seis dígitos. Nesse país, quando se vê o mal, quase
sempre é possível seguir o rastro do dinheiro.
O que está acontecendo agora é horrendo, ponto final. Sem meias
palavras. Só não é algo que surgiu do nada. Veio diretamente do manual de
estratégias dos Estados Unidos. Essa nação vem praticando maus-tratos e abusos
rotineiros contra pessoas não brancas há centenas de anos – e já separou
intencionalmente, sobre este solo, milhões de famílias, muitas delas de forma
permanente, por esporte ou por lucro. Levante sua voz contra isso. Mobilize-se
contra isso. Saiba, porém, que o que está vendo tem raízes profundas.
RBA
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