Ontem, Dia Internacional da Prostituta, refleti acerca do papel das mulheres – cis e trans – que atuam nesse segmento profissional. Sim, o sexo pago no Brasil é registrado na Classificação Brasileira de Ocupações sob número 5198-05. Logo, é uma profissão, ainda que cercada de estereótipos, preconceitos e estigmas. Ponderei e decidi não escrever sobre essa temática, haja vista a minha posição de fala talvez não ser a mais adequada: homem, cis, heterossexual e que já recorreu, por vezes, às profissionais desse segmento. Estamos em tempos de obscurantismo tão intensos, que tornou-se proibido para quem não pertence a determinadas minorias sociais, expressar seus pontos de vista acerca das opressões e violência s sofridas por certos grupos. Com efeito, mesmo se você encara como abomináveis as violações dos direitos sociais praticadas contra determinadas minorias, algumas pessoas dentre esses coletivos poderão tecer críticas contra seu posicionamento em favor delas. Nesse contexto, o raciocínio utilizado é: para contribuir com a luta da população trans e travesti, é necessário ser uma pessoa trans e/ou travesti, para contribuir com as lutas das populações negras, indígenas, ciganas, é necessário pertencer a esses agrupamentos.
Parece inimaginável que, por cooperar – sem qualquer presunção ou anseio de protagonismo – para a tessitura de uma sociedade justa e igualitária, alguém possa ser alvo da intolerância e do ódio de quem diariamente não acessa direitos básicos. Entretanto, se você está lendo esse texto agora e sonha com um mundo rumo ao pleno gozo da cidadania por todxs, prepare-se: você, provavelmente, não será alvo de perseguição apenas por conservadores. Em dado momento, alguns dentre as próprias minorias sociais que você defende, vão criticar seus posicionamentos. Sua legitimidade será questionada, suas intenções serão distorcidas e diversos adjetivos serão utilizados para lhe silenciar. Ainda outro dia, fui qualificado como “usurpador” por uma pessoa transgênera. O motivo? Escrever acerca da população trans e travesti. Não me surpreendi, porque não crio expectativa sobre nada, além de ter a plena consciência acerca das razões que me levaram a estudar gênero e sexualidade. Colocar o intelecto a serviço de conteúdos até agora tão delicados para muitxs, se dedicar às causas da liberdade, adentrar às grandes revoluções desse tempo, resulta na plenitude de viver a experiência humana para muito além do trivial existir.
Essas reflexões haviam me deixado em estado de zero absoluto. É como se a voz da minha consciência, flor delicada e vulnerável, estivesse, ante a época evanescente que se apresenta, murchado. Entretanto, uma frase, lida em rede social, mudou a trilha do silêncio outrora escolhida por mim: “prostituição só existe porque os machos procuram este serviço”. Refleti nessa sentença por horas e na madrugada fria de uma cidade de ruas escuras, decidi externar minhas visões sobre as prostitutas. Afinal, por que homens procuram mulheres em busca de favores sexuais? Será que a existência da prostituição está condicionada à procura dos homens por mulheres dispostas em lucrar, através dos seus próprios corpos? As resposta talvez estejam na história da prostituição.
De acordo com a psicanalista Regina Navarro Lins, em sua obra A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo, em torno de 6500 a.C., a mulher possuía uma estima social muito elevada, haja vista a agricultura ser associada ao ato sexual: os campos eram inundados pela chuva, as mulheres eram inundadas pelo coito. Havia, assim, íntima relação entre espiritualidade, agricultura e sexualidade. Ademais, não havia distinção entre espiritualidade e sexualidade, o que contribuía para conferir à prostituição, um caráter sagrado. A autora também afirma que no período neolítico, as sociedades eram matriarcais e as mulheres eram cultuadas como caminho para a Deusa da Fertilidade, ou o Sagrado Feminino. Havia encontros sexuais durante as festividades, nos quais mulheres e homens se reuniam para reverenciar o equilíbrio entre masculino e feminino e perpetuar a espécie. A prostituição possuía notável prestígio: as mulheres eram iniciadas nessa atividade no interior dos templos, a partir de um ritual, que consistia em um homem estranho atirar moedas sobre uma mulher, fazendo, com esse gesto, uma oferenda à Deusa. Após o intercurso sexual, a mulher retornava à sua casa, santificada, tornando-se, a partir daí, uma prostituta de templo, o que expressava alto grau de santidade. Nesse momento histórico, as mulheres assumiam o papel de sacerdotisas, coordenando rituais de sexo em grupo, vivenciados por toda a comunidade, celebrando a união com a energia vital da sexualidade, mais tarde denominada pelo fundador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), Eros, ou pulsão de vida, a qual tem por meta a autopreservação do sujeito.
Todavia, esse quadro se transformou a partir de 3000 a.C. Os sumérios, até esse período, culturalmente matriarcais, se aproximaram de culturas patriarcais, o que resultou na ruptura da visão matriarcal de mundo e na imposição do patriarcado. Povos guerreiros da Mesopotâmia e do Antigo Oriente invadiram territórios matriarcais, sujeitando divindades femininas à deuses-machos. É nesse instante que, segundo a autora, os homens passaram a perceber que seu sêmen fertilizava as mulheres, e isso lhes serviu para desenvolver a ideia da superioridade masculina e da consequente subalternidade feminina. É também nesse momento que determinados modelos de família vão desaparecendo pouco a pouco, para dar lugar exclusivamente a família monogâmica, em que os direitos sexuais da mulher ficaram cada vez mais restritos, para que o homem tenha segurança de que é o pai da prole. Aqui, o Sagrado Feminino é demonizado e associado ao Mal. As deusas femininas são depostas da sua liderança e submetidas aos deuses-machos, através do casamento: Inanna, deusa suméria do erotismo e da fertilidade, para quem templos com orgias sexuais eram dedicados, casa-se com Tamuz; Ísis, deusa egípcia do amor e da magia, se casa com Osíris.
A partir das imposições patriarcais, ser prostituta deixou o status de serviço sagrado, para ser atividade meramente comercial e de satisfação das fantasias masculinas: as mulheres já não eram o caminho para acessar a Deusa. Em seu lugar, os deuses-machos haviam sido colocados e a adoração a eles estava sob o controle da classe sacerdotal, algo herdado pelo cristianismo, que encerra no Deus Filho o único caminho para acessar À Grande Consciência Cósmica, ou, para os cristãos, o Deus Pai.
Ao longo dos séculos, porém, as prostitutas ficaram famosas por sua perícia no intercurso sexual e por seus talentos artísticos. Existiam basicamente três categorias de prostitutas no mundo grego: as pornai, “mulheres à venda”, que representavam a camada mais baixa, formada por escravas sexuais; as que serviam em banquetes, e tinham por função promover a alegria dos convidados, fosse tocando flauta ou dançando; e aquelas que eram autônomas, as hetairas. Essas eram prostitutas de luxo e exerciam o ofício sem necessitar de nenhum agenciador. Comercializavam seus corpos a clientes ricos, por dia, mês, ou até mesmo por ano. Estavam presentes em cerimônias importantes ao lado de personalidades. O maior nome desse segmento refinado de prostitutas foi Aspásia de Mileto, hetaira que viveu durante 16 anos ao lado de Péricles, considerado o pai do regime democrático em Atenas.
Mesmo com toda a rigidez moral da Igreja Católica na Idade Média, as prostitutas exerceram sua profissão. Se em 1254, o rei Luís IX, baixou um decreto ordenando a expulsão de todas as prostitutas das cidades e aldeias e o confisco dos seus bens, dois anos depois, ele próprio suavizou a pena, afirmando que era necessário apenas expulsá-las das ruas onde os religiosos andavam, reduzindo assim a prostituição à alguns locais das cidades, demonstrando a incapacidade do poder público em eliminar o comércio do corpo ou mesmo inserir as cortesãs na vida social em outras profissões. Já na Idade Moderna, os reis franceses modificaram a maneira do Estado encarar as prostitutas. Em 1560, Henrique II ordenou o fechamento dos casas de prostituição em todos os locais do reino. A repressão aumentou ainda mais em 1684, quando Luís XIV tornou a prostituição um crime, ordenando a prisão e mesmo punições duras, como chibatadas em público. Porém, tais perseguições não surtiram os efeitos desejados. Após a morte do “Rei Sol”, como Luís XIV era conhecido, as prostitutas chegaram a 25 mil.
Foi no período histórico conhecido como Era Vitoriana (1837-1901), momento que ficou marcado pela subida da Rainha Vitoria ao trono inglês, que a sexualidade ganhou uma nova trajetória. De acordo com o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), em sua obra História da Sexualidade I: a vontade do saber, a sexualidade foi transferida para o ambiente do lar, tendo como finalidade a reprodução. Se anteriormente, falar de sexo em público era algo permitido e mesmo incentivado, se havia tolerância neste respeito, no século XIX, o silêncio é instaurado. Este assunto é retirado da pauta do cotidiano. A sexualidade foi normatizada de modo maniqueísta, delimitando-se o certo e o errado. Se antes da Era Vitoriana, esse tópico era aberto e até mesmo permissivo, agora a rigidez e a necessidade de haver ordem, acirram os discursos e impõem a todos – crianças, jovens e adultos – um padrão de comportamento baseado em reprimir atitudes ou falares desvinculados do que oficialmente é correto. Este ordenamento, antes inexistente, ao ser posto na ordem do cotidiano foi denominado “Idade da Repressão”, sendo uma imposição surgida por diversos fatores, entre os quais, destacam-se dois. O primeiro aponta para a difusão do capitalismo e para a utilização das energias do ser humano no labor diário, enquanto máquina produtora de lucros para a classe burguesa.
O único local legítimo para a sexualidade era o seio familiar. Neste, o leito matrimonial significava a retidão e a pureza indispensáveis ao reconhecimento e a legitimação por parte do poder público. Todas as outras formas de sexualidade caminhavam na contramão do discurso normatizador. Eram marginais e se existissem, teriam de ocorrer de forma velada e clandestina. A partir deste momento que as prostitutas passam a ser abertamente marginalizadas, visto que não estão incluídas na instituição legítima do casamento, não fazendo parte dos mecanismos produtivos do sistema capitalista, tendo, no máximo, seus corpos como instrumentos de lucro. O resultado em uma sociedade com esta dinâmica foi óbvio: as prostitutas, por não representarem parte da cadeia produtiva do capitalismo, tiveram o acesso aos direitos sociais negados. Elas eram pecadoras, na lógica cristã, e cargueiras de doenças, na visão científica positivista.
Entretanto, conforme nos ensina Freud em toda a sua obra, o reprimido retorna à cena psíquica, sob a forma de pulsão de morte/destruição. A repressão sexual, instrumento de opressão contra as mulheres, instaurada sob a égide do patriarcado, vem sendo implodida desde a primeira onda do feminismo. Medo e culpa impostos à mulher reprimiram sua sexualidade, porém, retornaram na forma de movimentos sociais, desconstruindo os pilares culturais que demonizam o saber-poder sobre seus corpos.
Estamos na terceira onda do feminismo, e as mulheres, putas ou não, vêm assumindo papeis sexuais potentes. Elas passaram a falar de sexo abertamente. Elas fazem sexo como querem e dizem aos homens se querem ou não apenas isso, se tornando cada vez menos reprimidas e mais livres. Essa quebra de controle sobre os corpos femininos traz ao cenário novas formas de subjetividade. Consequentemente, fica claro que a prostituição não existe apenas em função da procura dos homens por mulheres trabalhadoras do sexo. Pelo contrário, a prostituição tem se configurado como forma de empoderamento, assim como era nos primórdios da humanidade, em sociedades matriarcais. Na atual correlação de forças, ser puta é um posicionamento político que instrumentaliza as lutas das mulheres por direitos historicamente negados.
Nas camas e nas ruas, a revolução feminista prossegue. Em tempos de inverno do mundo, as putas nos ensinam a repensar nosso lugar e refletir sobre privilégios: quem os têm, deve colocá-los à serviço da coletividade e jamais do ódio.
Armando Januário dos Santos. Sexólogo. Psicanalista em formação. Graduando em Psicologia. Professor de Língua Inglesa. E-mail: armandopsicologia@yahoo.com.br
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